Como a Bíblia salvou a razão?
Comumente se associa a Bíblia ao desconhecimento, tendo-a como fonte de atraso e ignorância. Mas será que isso é verdade?
Será que a Bíblia possui conteúdo que milita contra a razão e a sabedoria?
Será demonstrado aqui que na verdade, foi a Bíblia que salvou a razão!
Segundo George Holmes, no Dicionário Oxford da Europa Medieval,
As formas de pensamento e ação que temos como garantidas na atual Europa e nos Estados Unidos, que exportamos para a maior parte do Globo, e das quais nós mesmos não escapamos, foram implantadas na mentalidade dos nossos ancestrais nas lutas do tempo medieval (quando a Bíblia estava formando os processos de pensamento da cristandade).
A Bíblia também foi a responsável por, na Idade Média, criar o escolástico – indivíduo que usava a lógica como a principal ferramenta para o estudo da teologia. Nenhuma cultura antiga criara um homem racional com a capacidade intelectual de lançar as bases do Estado-Nação, dos parlamentos, da democracia, do comércio, do sistema bancário, da educação superior e de diversas formas de literatura.
O evidente sucesso do Ocidente em termos científicos, tecnológicos, militares e econômicos se deve essencialmente ao fato de que ele se tornou uma civilização pensante. E isso não foi uma coincidência da História. Tudo indica que a Bíblia foi a maior responsável por informar o Ocidente de que a realidade última do Universo era o Logos, a Palavra racional, de um Deus pessoal – o fato é que a força intelectual ocidental não encontra relação alguma com a sabedoria indiana do mantra (silêncio sem sentido), de uma energia ou força impessoal.
Também, ao contrário do que comumente se pensa, a racionalidade ocidental não toma todas as suas bases do desenvolvimento da imprensa, que disseminou o conhecimento – a existência da imprensa na China séculos antes do que na Europa, não a reformou (em 972 d.C. os chineses tinham 130 mil páginas impressas de textos sagrados budistas). O simples fato de agilizar a disseminação do conhecimento não garante uma revolução intelectual.
Por volta de 823 d.C., os mosteiros chineses tinham tantos livros que os monges tiveram que inventar estantes rotativas – em muitos deles, as estantes giravam de dia e de noite, sugerindo intensa atividade intelectual. A verdade é que, como observado pelo professor Lynn White Jr., os monges giravam as estantes não como se as utilizassem constantemente para atividades acadêmicas, mas com o objetivo de produzir um som incessante e sem sentido capaz de estimular a meditação – não havia interesse na erudição contida nos textos sagrados, na verdade eles buscavam a salvação pela rotação desses textos, como orações mecânicas e irracionais.
Ora, isso é muitíssimo diferente da oração como ensinada na Bíblia: trata-se de uma conversa racional com Deus, coisa que só é possível, pois entendemos que o Criador é um ser pessoal e dotado de razão. Uma vez que Buda negou a existência de Deus, o ato da oração abandonou a mente, afastou-se da lógica.
A Meditação Transcendental também trabalha com a ausência de significado: a ideia não é entender os mantras, os textos ou o que quer que seja – não deve-se atentar para os significados -, a proposta é o esvaziar da mente, isso aniquilando todo o pensamento racional, do qual se escapa focando a atenção no som. Aqui se valoriza a ignorância, “avidlhya”, e não a palavra racional, “Logos”. Há um motivo muito claro para que nenhum hindu tenha construído algo parecido com uma universidade nalgum dos seus locais sagrados.
É verdade, porém, que as origens da racionalidade europeia não partiram da Bíblia, que é um livro Oriental. As bases europeias mais antigas do valor atribuído ao pensamento racional se encontram na Grécia, começando com Tales e Anaximandro – eles souberam cultivar a vida da mente.
A própria palavra “Logos” foi primeiramente utilizada pelos gregos. A lógica teve uma posição central no pensamento grego, de fato, mas começou a perder a sua posição quando alguns filósofos se colocaram a questionar e a negar a existência do Logos transcendente, apegando-se ao gnosticismo. O professor Raoul Mortley demonstrou que a ideia da “palavra racional”, controladora do Universo, foi primeiramente trabalhada pelos pensadores pré-socráticos e chegou ao fim com o fechamento da Academia de Atenas, em 529 d.C. – embora isso não signifique que os gregos não tenham colocado a lógica em xeque desde muito tempo antes.
Talvez os maiores responsáveis pela aniquilação do Logos tenham sido os sofistas, que usavam da lógica para a manipulação política, o que gerou o entendimento de que a racionalidade não poderia servir para atingir o conhecimento da verdade. Como a lógica poderia ser confiável, se os sofistas conseguiam utilizá-la para apoiar conclusões mutuamente excludentes? Os céticos, mesmo não sendo místicos, acabaram colocando o racionalismo sob suspeita, sugerindo que o conhecimento real deveria ser obtido sem a influência da razão.
É interessante perceber que os cultos politeístas começaram a ganhar espaço na medida em que a filosofia grega tornou-se cética quanto à capacidade humana de se conhecer a verdade. Mitos, superstições e rituais encheram a vida das pessoas. Porém, nem tudo estava perdido. Enquanto o afastamento da ideia de um Deus racional obrigou os gregos a abandonar o Logos e a fé na razão, Fílon de Alexandria (25 a.C. – 50 d.C.) buscou nas Escrituras hebraicas e no pensamento grego antigo uma forma de impedir que o Logos caísse no esquecimento.
Como judeu, parte do “Povo do Livro”, Fílon se viu motivado a defender o uso e a função da linguagem, além de criticar a sua aplicação da parte dos sofistas. Mortley afirma que,
para Fílon, a criação do mundo pode parecer incompreensível, mas seus princípios estão não obstante escritos em algum lugar: a linguagem não deve ser abandonada, pois o princípio da palavra/razão permanece como a própria fonte do mundo criado.
Para o intelectual judeu, estava claro que a Bíblia judaica afirmava que o Logos, ou sabedoria, é parte do ser e da natureza de Deus. O apóstolo João também não teve o Logos como um conceito abstrato – para ele, o Logos é o próprio Criador, que tocou em carne e osso. Tendo acompanhado Jesus durante o Seu ministério, João viu a Palavra trazer mortos à vida, acalmar a tempestade, multiplicar alimento, morrer e ressuscitar.
A Palavra veio para salvar os pecadores arrependidos. O que o apóstolo teria pensado ao ouvir Jesus afirmando ser a própria Verdade (João 14:6)? A experiência de João com Jesus o fez entender que a realidade última não é o silêncio, mas o Logos. Isso fica mais do que evidente em João 1:1, 14. Quais as consequências de tal percepção?
Ora, se Deus é a verdade e se Ele pode falar-nos através de palavras entendíveis, então a racionalidade humana realmente é importante. Aqui temos o caminho para o conhecimento da Verdade: cultivar a mente e meditar na Palavra do Criador. É nisso que a racionalidade ocidental finca as suas raízes históricas. Observemos mais um dizer de Raoul Mortley:
Com a abordagem de João, há uma tentativa de fazer o logos adentrar o tempo e o espaço: o logos hipostatizado agora está ligado a uma figura histórica, e a identificação joanina do logos com Jesus constitui um dos fundamentos da filosofia patrística.
A inserção do Logos na História garantiu ao Ocidente um futuro intelectual diferente do de outras partes do mundo. A filosofia indiana, o platonismo e o gnosticismo desconfiam do tempo – na cultura indiana as encarnações são míticas, não históricas, e o tempo é cíclico ou, até mesmo, uma mera ilusão.
Os judeus, por sua vez, entenderam o tempo como algo real, nutrindo uma visão linear da História, que souberam registrar com grande maestria e honestidade. João fortaleceu essa perspectiva histórica ao inserir o Logos na história humana e, com isso, salvou o Ocidente do gnosticismo.
Outros grandes defensores da razão foram Agostinho (354-430 d.C.) e Boécio (480-524 d.C.). Esses dois pensadores preservaram a lógica e estabeleceram as bases intelectuais da civilização medieval e da própria civilização ocidental. O pensamento de Agostinho influenciou especialmente a Idade Média, o Renascimento e a Reforma, enquanto as ideias de Boécio foram muitíssimo importantes do início da Idade Média até meados do século XII.
Enquanto os céticos, místicos e niilistas questionaram a razão humana e a importância e significado da mente, Agostinho percebeu o princípio bíblico de que a nossa mente é o mais precioso dom que Deus nos concedeu. É a mente que nos faz a imagem de Deus e nos serve do potencial para amá-Lo e conhecê-Lo, conforme segue:
Longe de nós supor que Deus abomina em nós [o intelecto] em virtude do qual Ele nos fez superiores aos demais animais. Longe de nós, eu digo, que creiamos de alguma maneira que exclua o necessário para aceitar ou exigir a razão; pois não podemos nem mesmo crer, a não ser que tenhamos alma racional.
Segundo o historiador Edward Grant,
O papel que esses dois eruditos [Agostinho e Boécio] destinaram à razão e à racionalidade influenciou a maneira pela qual a razão foi vista e usada na Idade Média.
Também para Grant, foi uma cosmovisão bíblica, e não o Estado secular, que tornou o Ocidente pensante.
A verdade é que a igreja só sustentou a ideia do Logos porque a Bíblia providenciou uma base racional para crer na razão. Uma vez que a razão é parte da natureza de Deus e que nos foi dada, procurar a verdade através dela não foi temido ou evitado. Isso tornou o monge cristão diferente do asiático: enquanto o primeiro mantinha-se sempre em estado de alerta, com a mente fervilhante, o segundo alterava a sua consciência racional através da meditação, de drogas e de exercícios físicos e sexuais.
Sobre Boécio, analisemos o que afirma Grant:
Boécio garantiu que a lógica, o símbolo mais visível da razão e racionalidade, permanecesse vivo no ponto mais baixo do declínio da civilização europeia, entre os séculos V e X. Quando, no decorrer do século XI, surgiu a nova Europa e estudiosos europeus, por motivos que nunca saberemos com certeza, o legado da ‘velha lógica’ de Boécio estava disponível para fazer a renovação possível, e foi talvez instrumental para a geração desse processo.
Outro Pai da Igreja, João Damasceno (676-749 d.C.), também foi fundamental para o resgate da razão, uma vez que ele ensinou que ser espiritual é cultivar a mente. Segue uma de suas reflexões:
Nada é mais valioso que o conhecimento, pois o conhecimento é a luz da alma racional. O oposto, que é a ignorância, são as trevas. Assim como a ausência da luz é a escuridão, da mesma forma a ausência do conhecimento é a escuridão da razão. A ignorância é adequada a seres irracionais, enquanto o conhecimento, aos racionais.
Foi a Bíblia que salvou a racionalidade depois que os gregos desistiram dela! É em Jesus que estão ocultos “os tesouros da sabedoria e do conhecimento“. Há, inclusive, uma porção de livros da Bíblia chamada de “Literatura de Sabedoria“, que trata a sabedoria e o entendimento como coisas mais preciosas do que rubis e diamantes.
Na metade do segundo milênio da Era Cristã, muitas tentativas de reforma moral e social varreram a Europa – todas elas motivadas por duas propostas opostas. De um lado tivemos coisas como a Inquisição espanhola e a expulsão dos judeus e muçulmanos da Espanha, que visavam suprimir dissidências à força.
Do outro houve uma tentativa de abertura: homens como Wycliffe, Lutero e Calvino lutaram para disponibilizar a Bíblia para todo o povo, afim de que cada pessoa pudesse descobrir a verdade por si mesma. A revolução intelectual que acompanhou a Revolução Científica encontrou bases na Bíblia, como afirma o historiador e economista David Landes:
Na décadas que se seguiram [Lutero e as 95 Teses], os protestantes em vários países traduziram a Bíblia para as línguas locais […] As pessoas começaram a ler e a pensar por si mesmas.
A disseminação da Bíblia nas línguas nacionais foi um poderoso agente contra a ignorância e a superstição. Antes de terem bíblias acessíveis, os alemães, ingleses e suíços eram tão supersticiosos quanto os espanhóis – era comum que multidões acreditassem em supostas relíquias como “o dente do bebê Jesus” ou “no pedaço da cruz de Cristo“, objetos capazes de reduzir anos, dias e horas no Purgatório. Quando a Bíblia começou a ser lida pelas multidões, superstições desses tipo foram as primeiras a desaparecer.
Uma história engraçada sobre a Bíblia se deu quando o rei Henrique VIII, pensando que o povo ficaria mais submisso ao ter acesso às Escrituras, presenteou cada paróquia com uma Bíblia em inglês. O resultado lhe foi desastroso: com a Bíblia acessível, as tabernas e cervejarias da Inglaterra se tornaram sociedades de debate – as pessoas começaram a questionar e julgar cada tradição da Igreja e decisão do rei.
As autoridade religiosas e políticas foram analisadas criticamente. Essa grande revolução intelectual se espalhou por todos os cidadãos alfabetizados, não se restringido ao ambiente acadêmico. Todos os aspectos da vida foram atingidos pelo instigar da mente do povo, desde a área social e política, até as vias econômicas – note que, uma vez que os ingleses começaram a usar a lógica para interpretar a Bíblia, foram impelidos para a dianteira da política, da economia e do pensamento mundial.
Nos dias de Henrique VIII, as potências mundiais eram as nações católicas de Portugal, Espanha e França, mas algo colocou povos protestantes muito menores, como Inglaterra e a Holanda, na frente delas – e isso não se explica apenas com “armas, germes e aço“.
Segundo Cedric B. Cowing, professor de história, os fatores mais significativos que favoreceram o crescimento das nações de língua inglesa, que acabaram superando as potências católicas, foi o seu relacionamento peculiar entre a espiritualidade bíblica e o despertamento intelectual. John Wesley, por exemplo, além dos 66 livros da Bíblia, indicava uma lista de outros 50 livros que os seus convertidos deveriam ler.
Muitas habilidades foram desenvolvidas pelos cristãos, uma vez que eram estimulados a aprender a Bíblia e a entender os demais livros sugeridos. Segundo Cowing, o despertamento intelectual do Ocidente no período resultou dos avivamentos espirituais:
Na Inglaterra, muitos dos convertidos de Whitefield e de Wesley foram motivados a aprender a ler [a Bíblia] e a escrever, mas nas colônias do Norte (ex., Estados Unidos) onde as pessoas já eram alfabetizadas […] a energia e a disciplina produzidas pela Nova Luz foram a inspiração necessária para dominar conceitos religiosos abstratos […] Auxiliaram o desenvolvimento das habilidades cognitivas […] O Grande Despertamento induziu um intelectualismo de massas que, por fim, espalhou-se por todas as direções, desde a crença na soberania de Deus até o agnosticismo.
Os avivamentos espirituais também despertaram em massa a razão. As pessoas passaram a buscar o “Espírito que dá sabedoria e entendimento“. Esses avivamentos bíblicos salvaram os países protestantes da pobreza, que era crônica e mundial na época.
Segundo o economista Adam Smith, não é apenas o trabalho duro que resulta em prosperidade, pois muitos povos primitivos trabalham muito – a grande diferença reside no grau de habilidade, destreza e discernimento (ou pensamento), posto em ação. É possível utilizar racionalmente do tempo, do trabalho e dos recursos disponíveis. Isso aconteceu de modo louvável nos países protestantes e foi a Bíblia que os muniu e, com isso, orientou o desenvolvimento global.
Como conclusão, é curioso notar como a razão está sendo, novamente, posta em dúvida, isso enquanto cresce o ateísmo e, por consequência, o neopaganismo. É basicamente impossível crer que a razão possua algum valor se ela não for nada além do resultado de estímulos químicos e incertos ocorridos em nosso cérebro.
O niilismo, o ateísmo, as religiões orientais e tribais acabam tomando espaço quando a razão é enfraquecida – repare que a fé cristã também está enfraquecendo. É por isso que uma das maiores defesas do cristianismo continuará sendo, assim como foi no tempo dos antigos gregos, a defesa do Logos – sempre haverá gente disposta a reconhecer a existência da razão.
É por isso que Joseph Ratzinger, Bento XVI, no livro “Deus Existe?“, escrito com Paolo Flores d’Arcais, Planeta, 2009, quando confrontado com a questão do relativismo, relembra os pensamentos de Agostinho e Tomás de Aquino – “A Crise do Cristianismo no Início do Terceiro Milênio“, pgs 11-22.
Mantenhamos nossa mente alerta, ativa, fervilhante! Estimulemos o raciocínio, a lógica! O Logos é um dos nossos legados, como cristãos, e nos cabe preservá-lo – muito do que há de melhor no mundo que conhecemos deve-se ao discernimento da Verdade.
Fonte: O Livro que Fez o Seu Mundo, Vishal Mangalwadi, Vida, 2013, pgs 103-119.
Por: Natanael P. Castoldi, Entre o Malho e a Bigorna
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